quarta-feira, 24 de junho de 2009

A tarde de um cinéfilo pobre

Uma tarde de sol, daquelas em que só de olhar para o asfalto negro se fecha os olhos de tanta claridade. Em tempos assim, pessoas fazem o máximo para evitarem contato com outras. As que estão em casa, não veem a hora de chegar logo a noite e fazerem o que tem de fazer, praticamente jogando a tarde fora. Definitivamente, essas horas do dia são as piores para os entediados: nada na tv, nem na rua, nada em nada, vazio total. O pior é que o sol iluminando tudo dá a impressão de que há tanta coisa para fazer, é um tempo perfeito para isso, "mas está muito quente para fazer algo..." E está lá o solzão te acusando de preguiça. É triste!
Mas há um corajoso que sai de casa. Pelo jeito, é por uma boa causa, pois um caseirão que reclama de tudo, saindo numa hora dessas, é só por muita vontade de algo mesmo. Camiseta desbotada e suja, bermuda aos joelhos, rasgada e suja. Sobrancelhas fechadas, dentes para fora da boca (típica careta de quem não suporta ver o sol). Parecendo que andando sem compromisso, costas meio inclinada para frente, ora olhando os pés, depois olhando quem passa na rua. Chinelo fino, e feio, e sujo. Em outros tempos o cara teria vergonha dele mesmo pelo seu estado de vestimenta. Mas naquela hora não estava nem aí pra isso.
O cara é um molecão barbado, despenteado e sujo. Não é mal educado, apesar de querer aparentar isso. Estava sem um tostão na vida. Tinha uns pais indiferentes que o sustentavam, o que já está bom para um vagabundo.
Aí ele estava andando. Atravessou uns quarteirões e parou em frente de uma casa. Casinha comum em que qualquer família de casais novos e desambiciosos sonharia. O cara respirou fundo. Parecia que ele queria fazer uma coisa que realmente não precisava ou precisava fazer alguma coisa que não queria. Passou a mão na língua e depois passou no cabelo, tentando pentea-lo, o que não aconteceu. Fez uma careta pro cachorro mudo que estava de frente do portão olhando para ele. Balançou a cabeça, como aqueles boxeadores que se preparam para a luta. Sacudiu os ombros. Respirou fundo. Estendeu as maos para mais perto do portão. Olhou para o cachorro, pensando que se se aproximasse do portão o cachorro latiria. Mas o salsichinha não latiu. Não era como a maioria dos cachorros idiotas, mas parecia comtemplar a cena do rapaz ensaiando para fazer alguma coisa. O cara encarou o cachorro de novo, sorrindo. Olhou para frente, em direção da porta da casa. Bateu as palmas.
Quando terminou de bater as palmas, fez uma cara de nojo, como se não quisesse fazer muito barulho ou incomodar alguém. Pela calma da rua, e pelo barulho das palmas da mão, era impossivel alguma pessoa com no mínimo setenta por cento da audição não escutar. Enquanto ninguem abria a porta ou a janelinha embutida na porta, o cara ficou com uma posição de apreensão e medo. Pelo jeito, não tinha nem ideia do que sucederia.
O cachorro não reagiu em nada, parecia que também era surdo. Só se mexeu quando alguém abriu a janelinha. Nela apareceu um rosto praticamente irreconhecível por causa da escuridão da casa. Quando este rosto apareceu, o cara deu um sorriso tão largo que isso poderia exigir várias interpretações. Mas nenhuma interpretação foi feita, pois a pessoa dona do rosto rapidamente fechou a janela e abriu a porta.
O cara pareceu nervoso, como se estivesse arrependido de ter batido as palmas. Mas depois, ele respirou fundo novamente.
Era uma jovem que tinha saído da porta. A imagem do cara no seu portão, dando aquele sorriso, vestido naquelas roupas, era curiosa (também há outras interpretações, como bizarra, engraçada, assustadora, estranha), para a jovem era somente curiosa. Talvez, por isso que ela não hesitou em abrir a porta.
Naquela época, ouvir batidas de palmas não era muito aceitável aos ouvidos dos moradores das casas abordadas. Tinha um mendigo na cidade que não se cansava de pedir, com as mesmas frases ensaiadas. Mas ao ver o cara, a jovem pareceu ter alguma esperança na sociedade. Não que ele não tinha cara de pedinte, mas talvez não desapontasse na tentativa. O certo é afirmar que ela queria ouvi-lo logo para dispensá-lo o mais rápido possível e voltar a continuar fazendo seus afazeres típicos de uma tarde de sol: nada.
- Oi senhora! - na verdade o cara disse certo ao chamá-la de senhora.
- Oi - disse a jovem, na indiferença de quem sempre atende as pessoas no portão.
Na verdade, ela era uma jovem, se contar a idade, mas a aparência de cansaço, a face meio amassada, davam a ela uma aparência de senhora. O que podia dar crédito ao vagabundo, ao chamá-la de senhora. Aliás, ele não era tão idiota quanto aparentava.
- Olha senhora, a senhora por acaso não teria uma televisão para me dar? - foi surpreendentemente isso o que ele disse. Não dá para dizer que foi na cara de pau, pois o cara fez tanta incenação com os gestos: ele usou as mãos, a entonação de voz e uma careta de pedinte e simpático ao mesmo tempo. Só naquele pedido, a jovem concluiu que estava diante de um doido miserável.
- Não tenho nada para te dar - disse a jovem, com um pouco de raiva.
O cara, na verdade queria parecer um idiota. Fez outra careta para a jovem, como se quisesse dizer: "você tem certeza?" Mas a jovem não gostou do tipo de pessoa que o cara queria ser, pois o cara não fazia seus gestos naturalmente, nem falava como uma pessoa normal.
- Saia daqui seu vagabundo! Você pensa que eu sou palhaça, é? - disse a mulher, quase explodindo.
- Mas senhora, eu preciso de uma televisão... - insistia o idiota.
- Para quê? Você precisa é trabalhar!- interrompeu a jovem.
- Preciso de uma televisão para assistir um filme do Almodavar... você conhece o Pedro Almovadar? É um ótimo cineasta. Então, eu estou com um filme dele em casa, por isso que preciso da televisão.
Quando a jovem ouviu o nome "Almodavar" ficou perdidinha. Não entendeu nada, o que deixou-a mais nervosa ainda. Achava que aquele sujeito estava zuando da sua cara.
- Que Almodavar?
- Um diretor de cinema espanhol. Sabe? Ele é muito bom, recomendo pra você. Só que não se acha os filmes dele nas locadoras normais. Por sorte, eu consegui achar esse filme que tanto procurava.
O cara era mesmo um palhaço. Nem percebeu a cara de chatice da jovem, nem que ela nem sabia do que ele falava.
- E você não tem televisão não? - Disse isso com ódio. Ela não queria saber a resposta, mas o cara insistia:
- Sabe, lá em casa tem uma tv sim, mas minha família não deixa eu assistir os filmes do Almodavar, pois eles não entendem nada, e eu acho que eles tem raiva de eu ser tão inteligente. Eu já tenho um aparelho de video cassete, só preciso da tv.
A jovem não aguentava mais o papa furado:
- Vá caça o que fazer, moleque!
- Mas senhora, eu preciso da tv.
- Meu filho, eu não tenho nada pra te dar não. - Ela já tinha percebido que ele era só um pivete, apesar da altura, e das palavras que não são de crianças. - Tanta gente bate nas portas das casas para pedir comida, dinheiro, uma peça de roupa, e você quer uma televisão?
- Mas eu quero me alimentar de maneira diferente, por isso preciso da tv. Você consegue me entender?
- O que? Você está pensando que é alguem importante para eu não poder entende-lo. Some daqui moleque. É a televisão que tem te deixado assim.
- Ô senhora, você não entende...
- Vai continuar nessa lenga-lenga? Eu vou chamar meu pai.
- Não precisa, é só colaborar.
A jovem se voltou pra trás para chamar seu pai. Desapareceu dentro da porta. O cara fez uma careta pro cachorro, ou insinuando que a mulher estava brava, ou querendo dizer que ele era o motivo da sua raiva. Depois da careta, ele deu uma risada para ele mesmo, como se dissesse: "Eu sou um tremendo de um babaca".
Na porta apareceu um homem, que tranquilamente se podia supor que ele não teria menos de oitenta anos. Quando ele apareceu, o cara endireitou as costas que estavam dobradas, pois ele estava escorado no portão, inclinando o corpo para frente. No instante que ele se endireitou, já pensou em alguma coisa para dizer, e soltou:
- Oi senhor! - Estendeu a mão, passando o limite do portão, para comprimentar o senhor. Mas o velho não saiu do lugar, olhando para o cara, que ficou sem graça ao ver o velho rejeitando o comprimento, deu uma risadinha e disse, se aproveitando da aparência de leigo do velho:
- Pois bem, senhor. O senhor conhece o Pedro Almodavar?- aí o cara pensou: "Alguém tem que conhecer esse maldito espanhol".
- Ah!? - o velho soltou essa monossílaba que deixou claro que ele não tinha nem noção do cineasta.
O cara percebeu que velho realmente aparentava um velho, daqueles perto do fim mesmo. O cara fez uma careta de: "vai ser difícil". Respirou fundo e disse:
- Olha, eu percebi que tua filha odeia a sétima arte, mas como um bom ancião, espero que o senhor seja diferente. Dê um insentivo a este jovem sonhador. Me empreste tua televisão. Eu devolverei.
A cena era estupenda. Um vagabundo, vestido como um, pedindo uma televisão a um velho senhor que, ao ouvir o cara, parecia estar tão perdido, que dava a impressão na própria expressão do velho, que ele estava dentro de um sonho maluco. O cara estava pensando se realmente aquele senhor estava vivo, ou acordado, ou sonâmbulo.
- Não sei se o senhor está me escutando...
- Ah?!
O muleque riu. Era engraçado. Ele pensava:"o que eu estou fazendo?"
- Então senhor, já que está difícil a televisão, o senhor não teria três reais para inteirar com o meu dinheiro para eu poder ir ao cinema?
Silêncio
- Sabe, o filme que está em cartaz é realmente bom. não posso deixar de ver. Por favor! - O cara se sentiu como se fosse um viciado que precisava de uma grana para dar um pouco de alívio na alma. Mas ele aceitou essa condição e suplicou:
- Eu preciso ver um filme. - Respirou e voltou a abrir a boca: - Eu respeito a privacidade de vocês, mas eu só quero uma ajudinha. Ajude a cultura do seu país! Eu não vou comprar droga. Eu também não vou te matar se você não me der o dinheiro...
Sem mas nem menos, o velho entrou na porta. O cara se sentiu bem mais idiota do que diante da mulher. Ele tinha desperdiçado tanto talento de marketing, tanta encenação, entonação na voz, tanto dramatismo, tantos gestos, em vão, diante do velho.
Ele já ia embora, decepcionado, quando ouviu uma voz de criança:
- Ei, não vá!
O cara se virou. Era uma menina. Uma garotinha banguela, cabelo bem despentado e sorridente.
- Você conhece o Pedro Almodavar? Desculpe a minha mãe e meu avô. Desculpe não aparecer antes. Sempre tive vontade de assistir um filme do Almodavar.
- É!?- o cara não queria ficar falando. Já tinha falado demais. Estava tão surpreso que...
- Traga teu filme aqui - disse a criança - e volte logo.
O cara ficou tão maravilhado que não tinha nem palavras, nem caretas, nem nada para descrever o que sentia: a alegria de conhecer alguém que goste do que ele também gosta.

Mas nem sempre haverá uma garotinha que salve tua reputação.

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