segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

No outro lado

Começou de novo. A mulher se sente dominada, como uma marionete. Da cama onde ela estava se levanta, de pijama mesmo. O bicho que a toma não se importa se ela está bem vestida ou não. Se estiver rídicula é aí que ele gosta. Ela (ou ele) abre a porta da casa. Saí na rua. Ela saí correndo. Correndo.
Ela chora, se sentindo humilhada, mesmo dando gargalhada e vendo as pessoas olhando para ela aterrorizadas. Ela sabe que quem está dando gargalhada não é ela, mas ela não pode fazer nada. É como se estivesse num carro (o próprio corpo) e quem estivesse dirigindo fosse um maníaco. Ela só pode chorar e olhar para as pessoas fazendo todo o esforço possível tentando convence-las de que ela é normal e não é opção dela se passar por louca. Os olhos são o único ponto em que é ela que domina. Não pode fazer nada, só acompanhar e chorar.
Já não bastava a vida toda arruinada. O bicho não está nem aí. Quer fazer dela uma vergonha para todos os que a vêem. Ela continuou chorando enquanto passava na rua gritando, gargalhando, correndo, desfilando, mostrando a língua. Alguns riem junto com ela; outros ignoram; outros riem pelas costas; outros amaldiçoam por perturbar a paz; outros (ela repara nisso com certa alegria) abaixam a cabeça e oram bem baixinho por ela, tem dó, mas é só dó e não uma compaixão profunda, pensando na frase "quem se importa?"
Ela continua chorando, se lembrando de como ela era quando criança. Uma menininha feliz, mas cheia de ambições para o futuro. "Eu sou normal" ela diz com os olhos, mas o bicho a envergonha na frente de todo mundo, não importa quem.
Nessa altura já se sente cansada de tanto correr, a garganta doendo de tanto gritar. O bicho insiste. Ela desmaia. Caída no meio da rua, sobre a luz amarelada do poste, um povo com uma bíblia de baixo do braço passa bem perto dela. Alguns continuam nos seus assuntos inúteis; umas mulheres dizem "Misericórdia", mas só dizem. outros continuam mudos, mas clamando e gritando só no pensamento. Ela tem certa esperança nesse povo, sente um negócio esquisito quando eles passam, mas quando se distanciam, já não sente mais nada.
Ela ouve risadas, ouve silêncio, ouve carros até que escuta uns passos. Percebe que é um moço, se lembra dele, (parece que não, mas ela percebe quem não zomba dela). Ele se agaixa com uma bíblia na mão. Ela não lembra de mais nada.


Acorda. Está abraçando aquele moço. Está chorando. Está liberta.